sexta-feira, 24 de julho de 2009

Heresias vs espiritualidade - Prefácio do Livro de Ivode Kleber



Tenho a honra de convidá-los para a noite de autografos do lançamento do meu livro. Local: Faculdade Arthur Thomas - Rua Prefeito Faria Lima, 400 - As 19:30 horas - na próxima sexta-feira, dia 31/07. Um abraço do irmão Pastor Ivode Kleber. Espero você e sua família lá.

Prefácio do Livro:

Prefaciar uma obra é sempre um ato meio herege. Há o risco permanente de poluir a imaginação do leitor em relação às páginas que se seguirão. Para o bem ou para o mal – já que o tema por aqui não escapará a algum tipo de heresia -, o apresentador ou o prefaciador de uma obra carrega grande responsabilidade: orientar uma boa leitura e estimular a curiosidade e o desejo de disputar as letras do texto vindouro. Se o empenho não for bem-sucedido, o veneno pode ser dos piores, ou seja, o predisposto leitor deixa de lado uma possível grande obra por conta de um mestre de cerimônias literárias despreparado para fazer a coisa certa.

Acredito que no caso do livro de Ivode Kleber, “Heresia vs. Espiritualidade: a heresia de ser espiritual vs. a graça de ser herege”, o prefaciador caminha por águas seguras, contornando marés suaves e desembocando em oceanos repletos de conteúdo, num maremoto de grandes reflexões, pertinentes, consequentes e verdadeiramente abrangentes.

Ser herege hoje é abdicar, de modo mais ou menos proposital (sem com isso deixar de ser autoalienado), do convívio com a diversidade, do inevitável e enriquecedor aprendizado em meios plurais. O livro que o leitor tem ora em mãos atravessa esta notável pista: todos nós, aprendizes de humanos em tempos de barbárie e corrosão do caráter – para falar com o sociólogo Richard Sennett -, somos a um só tempo iguais na diferença, diferentes na igualdade. A ciência disso nos aproxima da ideia de divindade, nos garante a sadia transcendência, nos aprimora em solidariedade e amor. Em uma palavra, a boa fé, para não deixar de ser ponte para a infinita capacidade humana de amar e partilhar, tem de ser unidade e diversidade, morada de todas as possibilidades em franca dialogia, honesto confronto de perspectivas e valores. E pensar que o autor dessa síntese tão grandiosa, Karl Marx, na sua análise de composição rica e múltipla das realidades sociais modernas, já sob os desígnios atrabiliários do capitalismo, foi tido por herege por quase dois séculos...

A mesma linhagem de personagens que condenavam, na emergência da Era Moderna, nos impulsos radicais e permanentemente inovadores dos séculos XVIII e XIX, todas as manifestações da diferença, da rebeldia, da reflexão livre e cuidadosa, convertendo-as publicamente em simulacros diabólicos e incorrigivelmente hereges, atravessou o século XX e inicia o nosso milênio distorcendo práticas coletivas, marginalizando movimentos sociais, cooptando insurgências, apagando corações revolucionários. É sobre parte desses acusadores da heresia, desses caçadores de consciências livres e autônomas, que trata o excelente livro de Ivode Kleber.

Em linhas extensas e densas de suavidade crítica e cordialidade cristã, a letra de “Heresia vs. Espiritualidade” sentencia sem pena nem medo do erro: os velhos vendilhões do templo transubstanciaram suas faces e práticas; trabalham hoje em horário nobre televisivo e seduzem maldosamente pelo calcanhar-de-aquiles da atual humanidade despedaçada, isto é, atacam-lhe a falsa origem do desespero revelado pela exclusão da sociedade de consuno e aparências. Justificam a pobreza pela indolência do pobre, massacram o desempregado como um ser sem fé, atordoam as liberdades de pensamento acusando-as de “possuídas”, “desviadas”. Num mundo que se quer prático, útil e dócil – estabelecendo claro parâmetro de déjà-vu com a sociedade disciplinar de Michel Foucault -, desvalorizar o pensamento livre é regra número um, condição indispensável para o massacre da utopia, da fé que deve, acima de tudo, propor o vigor da mudança, da revolução das singularidades. Nesse epicentro generosamente revolucionário do livro-ação de Ivode Kleber é que reside o vigor da hermenêutica, a ciência-arte de desvendar escritos sagrados, sentenças proféticas, missões de amor, paz, salvação. Heresia e hermenêutica, como pólos cúmplices de uma dialética de auto-sustentação, fundamentam, pois, a refinada ponte de argumentos em todo o manancial de translúcidas águas que são os capítulos-rios desta bem-vinda realização editorial.

Absortos entre o conhecimento verdadeiramente religioso (altruísta e humanizador, hermeneuticamente solidário e livre) e aquilo que Ivode Kleber define com humor e agudizado senso de fortuna como “igreja sem cruz nem Cristo”, vale-nos o espetáculo, ressoam em nossas mentes as palavras fáceis, edifica-se diante de nós o templo de pedra, iluminado por dezenas de sensores de câmeras de TV, sinais de dispersão para satélites... Uma pseudoespiri-tualidade, para novamente expor palavra-chave desse belo e urgente livro em questão.

A heresia, historicamente, é tida como parecer heterodoxo contrastante com problemas já resolvidos. A questão é: “Quem resolveu os tais problemas?” “Quais critérios alimentaram as respostas?” “Em nome de quem e sob quais interesses foram outorgadas as soluções?” Se no passado as estruturas religiosas estreitamente ligadas ao poder de Estado definiram que Giordano Bruno era herege, as mulheres, bruxas, a democracia, satânica... cabe ao mundo presente perceber como as ideologias disseminadas e badaladas pelas várias indústrias em atividade, materiais e imateriais, definem o que é certo e o que é errado, vaticinando como hereges todos aqueles que destoam da normalidade, fogem ao óbvio, questionam o fixo, o dado, o absoluto. Fora dos modismos musicais, políticos, estéticos e religiosos, tudo é heresia, tudo é desgraça. E em relação a essa última indelicada expressão, o livro de Ivode Kleber novamente provoca: certas igrejas, por se considerarem o elã da razão pós-moderna, veem-se cheias de graça, a ponto de condenarem o que possa haver de santo, forte, belo em todas as outras manifestações da fé, inclusive das irmanadas na cristandade.

No intuito vitorioso de deslindar a graça herege da cruz destemperada da fé virtualizante e de autoajuda, Ivode Kleber percorre vários traçados pelos capítulos e fragmentos do livro, reunindo a análise num esforço de totalidade muitíssimo bem sintetizado nos argutos apontamentos a respeito do poder simbólico em Pierre Bourdieu – que se esforçou por toda a vida para fazer de sua Sociologia um meio de restituição aos homens do sentido e das possibilidades de suas ações - e da ética da compaixão e da vida em Leonardo Boff, entre outras importantes reflexões. As passadas firmes do livro partem dos conceitos históricos e religiosos de heresia, opondo interferências analíticas clássicas e contemporâneas. Há forte passagem por injunções da Igreja Católica e subsequentes ações (des)medidas, como perseguições e fogueiras levadas a finco pela Inquisição e pelos Impérios, destacando Roma e sugerindo para o leitor, que sabe ser um simples pingo uma grande letra, a vã e trágica prepotência estadunidense na inquisição da modernidade líquida: procurar e destruir os inimigos da fé de listras vermelhas e brancas, quadrado céu azul, cinquenta estrelas estanques e desbrilhantadas... (Aliás, é em nome desses novos imperialistas que falam os pastores e padres da fé eletrônica, do culto seco e cego ao individualismo, à abundância material destinada a mais e mais consumo.) A síntese histórica do livro tem seu ponto alto na excelente triangulação teórica sobre a evolução da fé neopentecostal, curvada à condição de bolsa arrecadadora de esperanças frustradas pela senda capitalista de exclusão e expurgo e recentemente aquilatadas pela promessa de paraíso em vida, aqui mesmo na Terra. Uma forma bem carismática, digamos, de negar a fé como requisito essencial na elaboração permanente de um outro mundo, mais indicado aos nossos filhos e netos, compatíveis com o amor que dizemos nutrir por eles.

A maior das contribuições trazidas à luz por este importante livro de Ivode Kleber é, sem sombra de dúvida, a pujante lição de solidariedade expressa na comovente crença que esse jovem autor deixa transparecer em suas convicções religiosas e também cidadãs. Os últimos capítulos e toda a exegese que faz da atual questão ecológica e de premência ética desnudam essas virtuosidades. Para muito além da crítica fácil, normalmente descabida e gratuita, o talentoso escritor deste “Heresia vs. Espiritualidade”, acadêmico de Direito, teólogo e pastor presbiteriano, promove a reunião dos saberes, fustigando de modo contumaz as intolerâncias religiosas e civis, frisando o inevitável congresso da paz e da comunhão entre aqueles que desejam de fato continuar a lutar por um mundo fraterno e justo. No endosso dessa maravilhosa utopia de nosso tempo tão carente e descrente, Ivode Kleber dá a sentença da verdadeira fé: sem liberdade para pensar, responsabilidade para agir, encontro humano para avaliar e medir, autonomia para escolher e refletir, toda crença é, para dizer pouco, desnecessária e estúpida. Seu livro é a força-motriz da imensa máxima do saudoso historiador brasileiro Caio Prado Jr.: “É por ação que os homens se definem”. É isso.

Marco A. Rossi
Sociólogo, professor e pesquisador da
Faculdade Arthur Thomas, Londrina/PR
Inverno de 2009

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